quinta-feira, dezembro 14

33-2006: BOAS FESTAS



O dia 8 de Dezembro, dia de Nossa Senhora da Conceição, padroeira de Portugal, é, por tradição na zona raiana, o dia em que os jovens, que esse ano vão às sortes, arrancam o MADEIRO do NATAL.
Em Toulões a azinheira mais grossa que houver no montado, graciosamente cedida pelo proprietário, é arrancada pelo pé .
O madeiro é depois enfeitado à entrada da aldeia, transportado pelas ruas para ser mostrado à população, e descarregado no adro da igreja, onde será "apichado" na noite de consoada para aquecer a alma a quem dele se acercar e onde ficará a arder até ao Ano Novo.
Com a proibição do arranque de azinheiras por motivos ambientais (apenas é permitido o seu abate indiscriminado para abrir clareiras no montado a fim de fomentar a construção de aldeamentos de luxo como forma de fixar as populações ao meio rural) este ano o MADEIRO do NATAL foi pobre.
Em compensação, os jovens de Toulões construíram uma enorme árvore de Natal (conforme mostra o postal) amiga do ambiente e da qual foi feita uma réplica em menor escala que pode ser visitada no Terreiro do Paço em Lisboa.
Estarei de volta depois do Ano Novo
Até lá, um abraço a todos e votos de BOAS FESTAS.

quinta-feira, dezembro 7

32-2006:Tchupistas


Se há notícias sérias, notícias pertinentes, daquelas com fundamento razoável e com as quais rejubilamos, como é o caso da que foi objecto do post anterior sobre o Carriçal, outras há para as quais não se encontra uma explicação lógica que nos permita pensar se valeu a pena serem divulgadas, mesmo que uma chusma de idóneos jornalistas se tenha perfilado para recolher, em primeira mão, a última exclusividade, que fica fora de moda logo que cai o pano do espectáculo mediático.
Em Novembro de 1996, (já lá vão dez anos e parece que foi ontem) uma insólita notícia pôs esta anónima aldeia de gente, tão humilde quão desprotegida, na capa de quase todos os jornais e até teve honras de abertura num dos telejornais da noite.
Nascida sabe-se lá por que artes do diacho, chegou escorreita e sem pecado aos jornais regionais Gazeta do Interior e Povo da Beira, passou pelo JN e, por obra e graça da maleita do "voyeurisme", chegou às televisões já de tal forma empolada que os ecos da sua invulgar existência se repercutiram até aos espanhóis El Mundo e Cambio16, chegando também, pasme-se, até aqui.
Então foi mais ou menos assim:
O Monte Fidalgo é um antigo coito, quase roubado à herdade da Zebreira, encantinhado entre a ribeira da Toulica junto à ermida de São Domingos, os Malhadis e o Vale de Cardas, onde a flor de tabaco Virgínia ainda vai dando algum ar garrido à faina agrícola que, segundo dizem, para rodar a terra respeitando a alternância de culturas (ou talvez pelas agressivas campanhas anti-tabágicas), está a dar as últimas fumaças, preparando-se já a sua substituição pela doce amargura da cana sacarina, com vista à produção de bio-combustível à base de álcool.
O povo, que por aqui vai sobrevivendo das magras oportunidades que esporadicamente vão surgindo, queixando-se de que isto vai de mal a pior, já diz: "É de vício em vício! Larga-se o tabaco e encarrilha-se na copaneira!".
Este terreno de cultura diversificada em que abunda o azinho e o sobro que, apesar da folha pintalgada que denuncia a doença do sobreiro assim como sintomas da seca que nos tem assolado, continua a oferecer de nove em nove anos, quase de mão beijada, umas valentes arrobas de cortiça que mal vão dando para as quebras.
Um enorme olival, em tempos bem tratado, produzia um azeite de primeiríssima qualidade. Hoje, à semelhança do que acontece nos grandes olivais da região, a azeitona fica na oliveira para matar o bicho à passarada.
Visto que a jeira nem chega prá peneira, deixou de ser rentável a sua colheita.
Os olivais fazem agora o deleite dos caçadores de tordos que aqui chegam de todo o país durante a época venatória e vão dando alguma animação a esta zona. Alguns, vindo mais pelo convívio, nem chegam a enxergar os tordos, mas que vão de cá atordoados com as nossas delícias gastronómicas, lá isso vão.
E é aqui que começa a história!
Naquela altura, as pastagens por entre este arvoredo enchiam a barriga a um enorme rebanho que, até então, dava origem a um divinal queijo amarelo da Beira Baixa.
Esse bem cuidado rebanho, sem explicação plausível, começou subitamente a ficar desfalcado.
Um dia faltavam duas ovelhas, passados oito dias faltavam outras duas, na semana seguinte faltavam mais três e assim por diante durante algum tempo. Vinte e tal ovelhas levaram sumiço, tendo sido encontradas mortas apenas nove, todas elas com um profundo buraco na garganta, sem vestígios de mais nada.
Na procura de uma razão que explicasse este facto, chegou-se a uma hipotética conclusão alvitrada pelo ti Zé Pequeno e corroborada por algumas autoridades locais na área agropecuária: "um lobo velho, só com um dente (o outro partira-o por qualquer motivo), atacava os pachorrentos ovinos".
Dado o alerta montou-se uma vigília, mas sem resultados.
Para a televisão, este misterioso fenómeno era, taxativamente, obra de um chupacabras, relacionando esta notícia com as recentemente chegadas de alguns países sul-americanos, dando conta de acontecimentos semelhantes, em que relatos de testemunhas diziam tratar-se de um morcego gigante que atacava as rezes para lhes sugar o sangue, cuja descrição era feita por Jorge Martin da revista UFO, em Outubro de 1996, escrevendo desta maneira:
("Criatura que tem a forma de animal, um par de asas, é muito selvagem, mede cerca de 1,15 m e é horrível", segundo um observador na periferia de Guayaquil, Equador, a 270 Km de Quito. O facto ocorreu em junho de 1996. Esse "Chupacabras" equatoriano tinha semelhanças com o que também apareceu em Porto Rico e México).
Estava oficializado: o chupacabras fizera sangue em Toulões.
A notícia, tal como foi dada a conhecer, passou aos olhos da generalidade portugueses com áureas de fenómeno sobrenatural, e o mistério que encerrava causou alguma perplexidade junto da população. Não era todos os dias que em Portugal se testemunhavam acontecimentos desta natureza.
As imagens dos animais e as entrevistas feitas no local, ao ti Zé Pequeno, o zeloso pastor e ao ti Domingos Gago, o feitor, deram-lhe credibilidade pela forma convicta com que descreveram o sucedido com as ovelhas.
Também numa primeira reacção, os toulonenses, principalmente as pessoas mais velhas que, tal como a generalidade do nosso povo é propenso a crenças e superstições, mal a notícia, pulando as cancelas do bardo, se difundiu no éter, fizeram logo o seu vaticínio, relembrando antigas histórias de bruxas que se contavam nos serões de Inverno sentados ao lume. Via-se, pelos indícios, que a evidência era óbvia: "aquilo é obra da diabólica que por onde passa, dá conta de tudo".
Para os mais sépticos, habituados a lidar diariamente com o gado e com os protagonistas deste enredo, a notícia possuía contornos de veracidade duvidosa e muitos lhe torciam o nariz, de tal forma que durante algumas semanas o fenómeno do chupacabras se tornou anedótico e sem importância, tendo apenas dado origem a mais um episódio, no mínimo, caricato.
A palavra chupacabras, que, entre galhofadas, andava alto e bom som nas bocas do povo, veio desenterrar o fantasma do Tchupa-a-tchiba. A velha alcunha que o ti Martinho ganhara quando era garoto pelo hábito de ordenhar a cabrinha bragada directamente para dentro da boca, mas que os anos deitaram no esquecimento e da qual já ninguém se lembrava.
Nesse tempo o Tchupa-a-tchiba rivalizava no nome com a do Mama-na-burra deixando-os ambos a rabiar que nem uma bicha-tanaza. E quanto mais rabiavam mais lho chamavam.
As nomeadas, oportunistas, apareciam sem serem esperadas, sempre que a ocasião era propícia e geralmente assentavam que nem uma luva, dado o conhecimento que o "padrinho" tinha do "afilhado". (ver aqui uma teoria sobre as alcunhas).
O ti Martinho, já à unha com o peso da idade, agarrado ao cajado de quando ainda era pastor e que agora lhe amparava as cruzes rangentes por via do caruncho, não estava pelos ajustes. Para ele, que ainda não se tinha inteirado das balelas, esta palavra envenenava-lhe o sentido. Confundindo Tchupa-cabra com Tchupa-a-chiba, sentindo-se alvo de chacota, ficava fora de si disparando pragas em todas as direcções .
- Catanos ma tchapem s’eu no esborraçar os miolos a um! - e alçava o cajado com a intenção de arrear no que estivesse mais perto.
Esta história, um mero assunto familiar a ser resolvido entre paredes, que tanta celeuma levantou, permaneceu durante alguns anos num segredo sacramental, até que um dia, zangando-se os compadres, e quando já todos a julgavam definitivamente sepultada, eis que ressuscitou e, trazendo à luz do dia toda a verdade, revelou toda a sabedoria contida no velho adágio.
Nunca constou que a televisão alguma vez tivesse feito mais qualquer referência a este assunto.
É que tirar esta região do anonimato, promovendo aquilo que tem de bom e que vale a pena ser dado a conhecer, não dá audiências, mas propagandear especulações e "aldravadas", valendo-se da boa fé e da ingenuidade desta gente tão vulnerável, transformando assuntos de família em "fait divers" é o que está a dar.
Era de bom tom que, intercalando com big brothers, futebóis e brasileiradas, as televisões que vão sendo, a par da mulher do pão e do homem do peixe que aqui vêm vender, os únicos elementos exteriores que por aqui, quebram a rotina, passassem também a transmitir programas apelativos para auxiliar na batalha contra o analfabetismo e a iliteracia, em prol da nossa cultura e da nossa identidade.

quinta-feira, novembro 23

31-2006:O TGV da Beira Baixa


Toulões é uma pequena aldeia que, tal como as suas congéneres da raia perdida, ficou irremediavelmente esquecida nos confins da interioridade, no limiar que une (ou que separa) as duas nações que, dormindo juntas no leito ibérico, quantas vezes acordam de costas voltadas.
"No limiar do iberismo pensam alguns".
Efectivamente, há quem já nos considere espanhóis, o que, em parte, é uma meia verdade.
Durante muitos anos, dizia-se a mangar, era bem mais fácil chegar a Madrid do que a Lisboa. Até à entrada de Portugal na CEE e antes da construção das IPs 2 e 6, (agora A23, por enquanto SCUT sem custos para o utilizador) demorava-se quase metade do tempo a fazer o percurso até Madrid (370 Km) do que até Lisboa (310 Km).
O bom entendimento com "los pueblos" fronteiriços dura há séculos. Apesar das históricas escaramuças entre os dois países que remontam ao início da portugalidade, este relacionamento manteve-se e cimentou-se ainda mais durante a guerra civil espanhola, quando muitos de "nuestros hermanos", fugindo a uma morte que ceifava o povo a eito, procuraram acolhimento do lado português.
O contrabando de géneros de um lado para o outro da fronteira, também permitiu um maior estreitamento entre as duas margens do Erges, num tempo em que o escudo batia facilmente a peseta no braço de ferro do câmbio, devido à fraca economia de além ribeira. A peseta, a rondar os 4 ou 5 tostões, proporcionava grandes vantagens na aquisição de produtos espanhóis, mas com a contrariedade de ficarem sempre sujeitos a ser apreendidos pela Guarda Fiscal.
Num ápice, a economia espanhola fortaleceu a peseta. Então, invertendo a tendência cambial, deixou de ser compensador ir a Espanha fazer compras, passando o comércio das nossas cidades fronteiriças a atrair os nossos vizinhos, apesar de continuarem a ser acerrimamente defensores daquilo que é deles.
Agora, com a livre circulação no espaço europeu, com a entrada em vigor da moeda única (nessa altura já a peseta valia 15 tostões) e com a crescente pujança da economia espanhola, vai-se naturalmente a Espanha abastecer de combustível, encomendar materiais de construção, mudar as lentes aos óculos e tanta coisa, com grande vantagem para a magra bolsa dos raianos.
Às vezes, deveras que bem nos apetecia ser espanhóis.
E ainda mais!
Com a implementação do TGV e a inicialmente prevista ligação por Cáceres, a entrar em Portugal aqui por perto, a distância até Madrid encurtar-se-ia significativamente.
Mas..., está decidido, está decidido. O TGV vai mesmo passar por Badajoz.
Segundo se diz por aí: "esta opção é a melhor para todos os lisboetas, enquanto que a entrada por Cáceres seria boa apenas para os portugueses".
Enfim, como as aleatórias decisões políticas dos governantes são mais dogmáticas que os postulados do Zé-Povinho, somos constantemente forçados a carregar com o nosso inconformismo.
Às vezes, em conversas sérias, brincando com o assunto, tivemos a imaginária esperança de que a passagem do TGV aqui por perto, seria uma mais valia para toda esta região.
Com algum privilégio, Toulões até teria um apeadeiro que serviria também o aeródromo de Termas de Monfortinho, a escassos quilómetros, que, desde a abertura da reserva de caça turística do Espírito Santo, aumentou de tal forma o tráfego aéreo que já se pensou em acrescentar a pista que iria, na sua reinauguração, receber o Airbus A380 no seu primeiro voo comercial (Ricardo Salgado como interessado e Sousa Cintra como utilizador já deram o seu aval).
Com esta obra a avançar em detrimento da da Ota, poupar-se-iam uns milhões que serviriam para melhorar a estrada que liga Toulões-Torre-Monfortinho e que há meia dúzia de anos tirou os já poucos habitantes do Carriçal de um soturno isolamento.
Esta estrada, com ligação a Espanha, ramificaria pelos concelhos vizinhos, sendo uma linha nevrálgica na estratégia para desenvolver toda a zona raiana.
Criavam-se incentivos não fictícios para uma nova agricultura biológica, já que é a actividade para a qual estamos naturalmente vocacionados.
Renovavam-se e ampliavam-se os canais de regadio da campina; retomava-se a produção de azeite mediante o renovo dos olivais, assim como o restauro dos lagares ou a construção de novos; adquiria-se maquinaria para encher os campos com grandes cearas (esquecendo os trangénicos) limpando o mato atreito a incêndios; curava-se e renovava-se o montado de sobro e azinho, tal como a criação de novos pólos veterinários para ajuda à exploração pecuária, nomeadamente o porco preto que tanto gosta de se alimentar, vagueando de azinheiro em azinheiro enchendo o corpinho de bolota e outros mais que fariam renascer aqui uma vida nova, um pouco à imagem do que se fez do lado espanhol com os subsídios da CEE.
Para aquisição de mercedes, jeeps e outros veículos de trabalho a custos bonificados, os interessados teriam, tão só, de comprovar a rentabilização do investimento feito com o incentivo de que beneficiaram, prova essa que serviria também para ganhar o direito a futuros incentivos.
Este sonho poria certamente Toulões e toda esta região, no mapa do desenvolvimento.
Estou já mesmo a imaginar as televisões a acotovelarem-se para entrevistar o Zé Torres, nosso digníssimo presidente da junta, sobre projectos futuros para a fixação de pessoas e a reabertura das escolas primárias para que incutam às crianças o orgulho de ter nascido aqui.
Voltaria o burburinho da canalha no recreio que em alegres cantigas de roda trauteava agora: "O TGV da Beira Baixa / Tem vinte e quatro janelas / Mais abaixo, mais … (vocês sabem o resto)".
A ser real este feito, a sua notícia relegaria para segundo plano uma grande reportagem jornalística sobre um acontecimento que fez aqui concentrar todas as atenções, mas que passados dois dias não passava de uma longínqua efeméride.
Essa notícia, no último dia de Novembro de 2002, (não sei se ainda há quem se lembre) foi precisamente sobre o Carriçal (Carcel como dizem os mais velhos).
Neste pequeno aglomerado pertencente à freguesia, a cerca de 5 Km, onde, com pompa e circunstância, se inaugurou a luz eléctrica que, tardiamente, veio trazer alguma qualidade de vida às gentes desta terra, que nem aldeia é, onde o passado está bem presente, mas em que para o presente, mesmo com a recente chegada da luz, não se vislumbram réstias de futuro.
Este acontecimento, raro nos dias que correm, foi celebrado com festa da rija pela numerosa comitiva de convidados da autarquia que se deslocaram a este lugar, longe de tudo, e pela população residente, para assistir ao "dar ó botão" no Carriçal.
"Afectível, afectível, só cá moram três pessoas, mas o tempo da zêtona ajunta cá mai gente…agora stamos cá… (pausa para pensar) …cinco!", respondia desoladamente a ti Moreira Felisbela, do cume dos seus 80 anos, ao jornalista da TSF João Morais (que merecia um prémio pela excelência da reportagem que aqui fez (Na penumbra) e pelo seu profissionalismo na arte que tem de reportar sobre assuntos da ruralidade).
O presidente da Câmara de Idanha-a-Nova, Álvaro Rocha, também inquirido a pronunciar-se sobre esta obra, começando naturalmente por refutar a possível ideia de eleitoralismo inerente ao evento e salientando que os três votos destas pessoas nem sequer fizeram a diferença para os seis que lhe deram a vitória (no mandato anterior), respondeu em tom de confidência:
- Sabe que, às vezes, com os desperdícios dos investimentos de obras maiores, fazem-se estes pequenos milagres!
Esta deixa leva-nos a perguntar: onde, depois de concluídas estas obras faraónicas, TGV / Ota, irão ser aplicados os desperdícios do esbanjamento?

terça-feira, novembro 21

30-2006: Meio desafio aceite


Após alguns dias de ausência inesperada, estou de regresso a este convívio virtual.
Foi com alguma surpresa que me deparei com um desafio proposto, quase em simultâneo, por dois companheiros de lide:
O Joaquim (Por terras do rei Wamba) e o Jorge (O sino da aldeia).
Aceito com satisfação o desafio, mas apenas pela metade. Vou revelar as cinco manias, mas, no que toca a desafiar mais cinco é difícil, dado que durante este tempo de ausência gorou-se a oportunidade, visto que praticamente todos os que costumo visitar já foram desafiados.
Como dizia um famoso fadista do antigamente: "com letra minha e música do meu pai... ENTÃO AQUI VAI."
1 – Tenho a mania que não tenho mania nenhuma, mas algumas pessoas apontam-me as que se seguem:
2 – Que tenho a mania de dizer sempre que sou de onde sou, enquanto outros dizem que são da Beira, de Castelo Branco ou, vá lá, de Idanha-a-Nova.
Quando me ouvem dizer que sou "dos Toulões" percebem "estou longe" e consecutivamente vem logo a pergunta: "estás longe?" Eu respondo sempre da mesma maneira: "estou, mas é como se lá estivesse".
3 – Que tenho a mania de que não há melhor fruta que o diospiro e que os figos inverniços eram melhores se viessem antes dos temporões.
4 – Que tenho a mania dos sapatos de camurça porque não é preciso dar-lhes graxa. (aqui digo-lhes que: brilho?, só quanto baste)
5 – Que tomar café sem açúcar é tomar uma atitude drástica.
UM ABRAÇO A TODOS!

segunda-feira, outubro 30

29-2006: A frágua

Pormenor de um "cancelão" construído no final dos anos 50.
Todas as peças foram trabalhadas manualmente e a assemblagem foi feita através de rebitagem. Este trabalho, que hoje nos parece tosco, era, à época, considerado de qualidade superior .

Engenho de furar manual com sistema de engrenagem para 2 velocidades. Era uma ferramenta essencial para a execução de serralharias (tipo foto acima). Esta reliquia, que pertenceu ao ti Zé Heleno, está a embelezar o jardim da habitação de um seu familiar.


Em tempos, quando uma intensa actividade agrícola enchia os celeiros do país, mas só dava pão a meio alqueire de gente, com a chegada do São Miguel e o início das sementeiras, o ferreiro não tinha mãos a medir.
O trabalho redobrava. Reparar os arados, em que aguçar rêlhas, substituir aivecas, arranjar os dentes das grades e compor outras ferragens, eram tarefas urgentes, a realizar antes que passasse a maré trazida pelas primeiras chuvas do Outono que punham a jeito a terra para ser esventrada e da qual se tirava um ano inteiro de sustento para família.
Depois, era mais o tempo que passava no tronco a ferrar as vacas de tiro do que na frágua, onde a feitura das ferraduras e dos canêlos havia sido prévia, sabendo, por experiência, da avalanche que chegava nesta época, em que o esforço dos animais e o consequente desgaste das protecções dos cascos era acrescido.
A valentia e a disponibilidade do ti Zé Guardado Campos para o trabalho, era por todos reconhecida. O ti Zé Ferreiro, como lhe chamavam, quando se punha a malhar o metal sobre aquela bigorna de aço, cujo timbre competia com o do sino da igreja quando tocava a rebate, numa chamada do povo da aldeia a reunir para acudir a uma desgraça, em que nos dias da aragem de leste levava o som da emergência a salvar o Cabeço dos Frades, fazendo-se ouvir em clarinho no arraial da Pingona.
Com a sua hercúlea envergadura e o seu basto bigode, quando calhava a cravar ferraduras, impunha o respeito a qualquer cavalgadura.
Temendo alguma reacção intempestiva do ferreiro, "as bestas nem buliam as orelhas!" - como contava o ti Mné Correia.
Cada vez que o ti Zé Ferreiro moldava o ferro amolecido na incandescência da forja, avivada pelo sopro de um velho fole que ia aguentando o fôlego graças ao amaciar das rugas pela bola de sebo enfarruscada, religiosamente embrulhada num farrapo de saca e guardada numa buraca da parede, o povo evitava passar-lhe à porta, escudando-se da estridência das pancadas, capazes de perfurar os tímpanos aos mais incautos.
Os dele já há muito deixaram de reagir ao estímulo das vibrações sonoras. Quando a frágua zunia, por toda a aldeia se sentia a cadência do seu malhar que ensurdecia o martelo e a bigorna.
Pensa-se que terá nascido daqui a expressão bastamente usada em Toulões - "Estar com os ouvidos na casa do ti Zé Ferreiro" - que me parece ser exclusiva desta terra (e corrijam-me se estiver errado).
Usa-se para chamar a atenção a alguém que não ouve porque está distraído, com o sentido na lua, ou alguém a fazer ouvidos de mercador porque, pura e simplesmente, para os dissimulados, qualquer chamamento não passa de um imperceptível ruído de fundo.
Hoje a expressão continua a utilizar-se amiúde, mas, com a usura provocada pelo passar do tempo, foi perdendo o "ti Zé" e o "Ferreiro" passou de próprio a comum, resultando no que hoje se diz:"estar com os ouvidos na casa do ferreiro!?"
Mas as histórias já muito antigas deste homem, do qual dificilmente se compreendia como é que, com aquele corpanzil de arrasa montanhas e com umas mãos tão grossas e calejadas, dava ao mundo peças tão habilmente forjadas, eram saudosamente relembradas, quer pelo ti Canilhas, quer pelo Ti Zé Heleno que, com jeito, lhe herdaram a arte.
Embora ambos lá tivessem o seu géniosito, que por vezes originava discussões de índole profissional, havia um ponto com o qual comungavam:
A paciência com que aturavam os garotos tardes inteiras, quando estes andavam ao desafio para ver qual deles lhes ganharia as graças e a honra de poder dar ao fole. Era uma brincadeira que ajudava a granjear confiança e que de vez em quando resultava nuns favores.
Havia sempre uma vez para, numa aberta, pedir o caldeamento de um arame de reforço de caldeiro velho, retirado para fazer as argolas que guiavam em alegres correrias ao desafio pelas ruas do povo.
Cada qual tinha o seu dom.
O ti Canilhas era exímio aguçador de ferramenta. A têmpera que lhe dava, sempre no ponto, acrescentava todavia um pouco mais de vida aos enxadões, malhos e picaretas que lhe passavam pelas mãos.
Era também um excelente ferrador. Para além do cravar das ferragens nas patas dos animais, tinha sempre grande preocupação com o aparar dos cascos e com as doenças que poderiam estar latentes. Quantas vezes uma raspadela e uma leve desinfecção com creolina era um preventivo para a evitar a coxeira que inferiorizava o animal.
O ti Zé Heleno, esse, dedicava-se mais àquele trabalho de ferreiro que hoje se designa por serralharia civil.
Eram afamados nas redondezas os engenhos e noras com os respectivos alcatruzes, portões, gradeamentos para varandas, e outros trabalhos similares que saíam da sua lavra.
Tinha também um jeito especial para colocar aros de bandagem nas rodas dos carros de vacas.
Mas a sua actividade não se resumia a trabalhos de ferro.
Era requisitado por muita gente de fora como especialista em fazer sangrias no vivo doente. Através de um ponto de incisão localizado de acordo com o sintoma (e aqui contava a experiência), de onde escoava o sangue maligno debelando a maleita, sendo depois naturalmente renovado.
Em bestas com augamento, era lancetado o pescoço lateralmente junto à cabeça, deixando escorrer o sangue na quantidade razoável.
Em animais com sintomas de doidice, principalmente bezerras, a incisão era no rabo ou nas patas dianteiras em que as feridas eram desinfectadas com aguardente e ligadas com um pano até sararem. Em último recurso, caso o animal não melhorasse, fazia-lhe uma verga de fogo entre os cornos, na zona dos miolos, que consistia em marcar com um ferro em brasa uma pequena circunferência (um O). Nos dias imediatos, as ventas eram-lhe borrifadas com vinagre para a obrigar a espirrar e assim soltar alguma viscosidade que se tivesse alojado no cérebro.

Mas o ti Zé Heleno não curava só os aleméis.
Curou um cobrão já adiantado à ti Teresa Rita, coitada, já com o bicho alastrado pelo corpo, quase a juntar a cabeça com o rabo. A velhota, a quem uma benzelhoa já tinha tentado curar a moléstia com rezas e defumadouros, lá vinha agora, dia sim dia não, toda encorcovada com a bolsinha do "tremez" que depejava em cima da bigorna. O ti Zé, com uma pazinha de ferro que parecia uma rapa de masseira, em brasa, colocava-a sobre a manchinha do cereal que queimava de forma a libertar um óleo com o qual lhe untava a zona afectada. Um fumo espesso e um cheiro intenso a queimado invadiam as imediações como que a assinalar o sucesso da intervenção.

E uma vez também, um arrepiante berro de dor, libertado numa voz de criança, logo seguido de um intenso odor a carne queimada, escaparam da forja. O João Pesaduras que lá ia mandar aguçar uma picareta do pai, reagiu instintivamente, correndo os poucos metros que faltavam com o coração nas mãos, a pensar que algum amigo fizera como Txulas. Na semana anterior queimara uma mão ao apanhar, uma das ferraduras ainda em brasa, que o ti Zé aventava para do chão da forja, onde arrefeciam lentamente, recobertas pela terra enegrecida pelo coque e pela jorra que sobrava do material em fusão.
Felizmente enganara-se.
O grito de desespero soltara-o um garoto de fora, que o pai ali trouxera na esperança de lhe curar um nascido, depositando toda fé na promessa feita à Senhora do Almortão e na sabedoria do ti Zé Heleno, afamado por queimar, com uma ponta de fogo, a moléstia pela raiz a este tumor gangrenoso que dizia ser um cabrunco.
Enquanto o rapaz gemia, ainda com a maçã do rosto marcada, o Pesaduras, que já conhecia os cantos à casa, apressou-se a abondar a almotria do azeite para o preparado. Uma mistura com pó de cal morta para untar a zona ferrada, era aplicada em cataplasma e renovada diariamente para atenuar a dor e facilitar a cicatrização da queimadura.
Terminado o serviço, o ti Zé Heleno, enquanto arrumava a ferramenta, exibe a enorme tenaz com que manipulava as peças enrubecidas no braseiro da forja.
- Se fô p’ciso tamém arranco dentes! No éi o´João? - disse ele a lembrar uma vez em que pregou um susto ao rapazito, ameaçando, na brincadeira, meter-lhe o tira dentes, como lhe chamava, pela boca dentro.
O João, a observar as caretas que o garoto fazia e a pensar na dor que estaria a suportar, nem respondeu. Estava, naquele momento, com os ouvidos na casa do ferreiro.

INTÉRPRETE PARA FORASREIROS

abondar; passar, fazer alcançar, dar
aleméis; plural de alemel – animal
augamento; doença que aparecia nas bestas manifestando-se por cansaço e apatia quando estas, passando por um local onde habitualmente se lhe dava algo de comer, não se lhe matava esse desejo. Uma mão-cheia de ração ou duas ou três passas de figo serviam para desaugar o animal (dizia-se que também acontecia nas crianças).
cabrunco; carbúnculo (ver aqui)
canêlos; ferros com função de ferradura que se aplicavam nas patas das vacas de trabalho.
cobrão; doença cutânea (ver aqui)
dissimulados; teimosos, fingidos
frágua; forja, oficina de ferreiro
malho; machado
manchinha; pequena mão-cheia, pequena quantidade
nascido; tumor
o vivo; os animais em geral

terça-feira, outubro 17

28-2006: O rei dos matrecos



A televisão faz milagres.
As campanhas publicitárias que nos invadem o quotidiano, entrando-nos, inclusive, todos dias casa adentro sob a forma de tentação, em que tudo nos é apresentado como que a moldar-nos a opinião e a vontade e a forçar-nos a ter um conceito das coisas adequado às pretensões de quem quer vender, de que só nos apercebemos quando já a ilusão nos apanhou desprevenidos.
Neste campo, é de realçar (negativamente do meu ponto de vista de consumidor) a acção dos psicólogos e sociólogos ao serviço do marketing e da publicidade que nos apresentam essas coisas de forma irresistível e quase incontornável.
Isto a propósito da campanha curso que, mercê do spot colocado no pequeno ecrã, parece ter ressuscitado o mais que morto e enterrado jogo dos matraquilhos, desde há anos engolido pelas máquinas de jogos electrónicos que dão cabo da vista e dos nervos à rapaziada mais nova, tornando-a egoísta, fomentando o seu isolamento e a consequente perda do gosto pelo convívio.
Este anúncio trouxe-me á memória os tempos em que com um grupo de amigos fazíamos grandes jogatanas à "roda bota fora", chegando ao ponto de apanhar autênticos suadouros de cavalos de arado.
O jogo dos matraquilhos era um jogo salutar
Jogava-se, ganhava-se, perdia-se, estava sempre tudo bem, porque nisto do ganhar e do perder a diferença estava apenas na cara com que se ficava. E não havia renhonós.
Mas o gosto por este jogo já vinha de trás.
Quando, ainda garotecos, dávamos rodioscas e mais rodioscas para conseguir a milagrosa moeda de 10 tostões que inevitavelmente ia parar ao moedeiro da mesa dos "bonecos" do ti J’quim da Fonte, quando ainda tinha a taberna nos baixos da casa do Tónho Maria e que fazia jorrar uma enchente de abifas de madeira.
Ainda mal chegávamos aos varões. Jogávamos empoleirados em cima de grades de pirolitos para conseguir uma melhor panorâmica do relvado.
Era o nosso promontório.
Os anos foram passando e, em todos, o gosto foi sempre acompanhando, mas havia um elemento que se destacava. O Bombarralito tinha o jogo nas veias.
O tempo passado agarrado aos varões deu-lhe uma habilidade e uma rapidez de movimentos permitindo-lhe fazer fintas que trocavam os olhos aos adversários e causavam espanto na assistência como se de um espectáculo de ilusionismo se tratasse.
Mas fazia outras fintas.
Quando cumprimentava os mais velhos, homens de labuta com quem partilhava a convivência em conversas sobre experiências da vida do dia a dia.
No firme aperto de mão cada um tinha o seu sentir. Sentia-lhes o trabalho reflectido naquela aspereza provocada pelo adoçar da ferramenta e depois sentia-lhes o sentir de quando lhes ouvia da própria boca o inesperado elogio, olhando-lhe para a palma da mão e mostrando-a aos amigos, como fez e disse uma vez o ti "Fanecas":
- Este é que é um estudante com deve ser. Ponde os olhos nestas mãs de cavador!
Mas logo ali se lhe esbarrondava a admiração e se lhe soltava o sorriso, ao saber que aquelas irrisórias calosidades, comparadas com as suas, eram ganhas com o passar do tempo, agarrado às "mãzeiras" dos bonecos.
Quando havia jogos renhidos, a salinha do café novo era um vulcão em erupção. Uma algazarra tremenda que punha tudo em reboliço.
À sala ao lado chegava o desassossego da matraquilhada desconcentrando o ti Valentim e o ti França. Dois esgrimistas em duelo que, sentados frente a frente, defendiam cada qual a sua dama num jogo sem subterfúgios. Ali não havia mandingas.
Nada a esconder, o jogo estava à vista de todos. Inclusive dos mirones que rodeavam os jogadores com um olho nas damas e o outro na mesa do lado, sobre a qual a sueca gerava uma disputa vasa a vasa. Despi-la sim, mas ninguém queria apanhar a chita.
Incomodados, ou um ou o outro, o que estava no momento a perder, gritava a pedir silêncio. E era geralmente à vez.
Quando era o ti Valentim, dizia ele, com a calma que o caracterizava, como se estivesse a falar para si próprio:
- Estes gajos pá, não têm respeito nenhum pá, p’cisavam todos era de um boa mão de ensino pá!
Quando era o ti França, mais ríspido, berrava repetidamente sempre a mesma coisa:
- Pouco barulho, cambada de matchos couceiros. Em vez de estarem aí agarrados aos varões agarrem-se aos varais para ver se amansam.
E às vezes amansavam.
As férias escolares não eram só divertimento.
Para além de ajudar a família nos trabalhos do campo e cooperar com alguns amigos, sempre graciosamente, a malta arranjava uns trabalhinhos para ganhar um cobres que davam um jeitão nas idas às festas das redondezes e para uns gastos extra.
Bem-bonda o esforço que os pais faziam para os trazer a estudar, ainda ter que lhes andar a pedinchar para isto ou para aquilo. Alem do mais, com estes trabalhos fintava-se o ócio evitando a queda na monotonia da espreguiçadeira e, em simultâneo, a fama de parasita com que alguns estudantes eram rotulados.
Esta pelo menos, a ele, passava-lhe ao lado.
O trabalho que mais gostava de fazer era ir à areia ao Aravil.
É verdade que ás vezes era duro, mas dava-lhe gozo porque trabalhava bem o físico. Balançar pasadas de areia do leito do ribeiro cá para fora. Primeiro para um "banco" e depois para a margem e só à terceira é que era carregada para o reboque. Custava.
Mas no final vinha a compensação. A viagem de regresso era meia hora de sesta deitados em cima daquele confortável colchão areia.
Mas houve uma vez em que a coisa piou fino.
Um trabalho habitualmente simples tornou-se num inferno. Um dia inteirinho a amassar barro para fazer "adobres" com uma enxada de cabo rugoso e cheio de escadinas. A coisa mais leve deste trabalho era a palha que se lhe misturava para dar consistência.
Para quem tinha mãos de estudante, como dizia o ti João Páscoa, ao fim de pouco tempo era como pegar num ferro em brasa. No fim do dia tinha as mãos numa lástima.
Nessa noite não houve rei dos matrecos.
As mãozeiras escaldavam-lhe os calos ainda dormentes fazendo-o perder todo o seu fulgor.
Mas o esforço valeu a nota de quinhentos que lhe permitiria ir com os amigos à Zarza fazer a festa do São "Bertlameu".
Davam para pagar a entrada no baile da pista, tomar umas cubatas, comprar um saquinho de terrum para adoçar a boca aos velhotes e ainda sobrava para, já madrugada alta, tomar um cacau quente com um churro antes de iniciar o caminho de regresso, a pé até Salvaterra.
INTÉRPRETE PARA FORASTEIROS
Bota; deita
bem-bonda; já não basta, já não bastava
cubata; gíria espanhola que significa "cuba-libre"

esbarrondava; de esbarrondar - desmoronar, ruir, demolir
escadinas; pequenas farpas da madeira
mandinga; batota, truque de magia
mão de ensino; correctivo, lição de moral
renhonós; hesitações, meias medidas, queixumes
rodioscas; voltas sobre si mesmo
terrum; do espanhol "turrón"

quarta-feira, outubro 11

27-2006: Uma experiência de vida

O canal 2 da RTP passa no dia 15 de Outubro (domingo) às 11:15h, no programa "CONSEGUIR" uma entrevista com António Brás.
Hoje publico esta entrada para prestar homenagem ao Brás, um amigo de longa data que um dia, lá na estupidez onde a vida dá a volta, perdeu irremediavelmente a visão.
Com base na sua experiência vivida desde então, escreveu um livro (capa acima) com a intenção de ajudar pessoas nas mesmas condições e para lhes dizer também que, afinal, o negro é apenas a mistura de todas as cores.

Excerto da nota do editor
O livro oferece informações e respostas a muitas das dificuldades e dúvidas que quotidianamente se colocam aos que são forçados a viver com limitações de visão, organizado em três partes fundamentais: o processo clínico, as ajudas técnicas (o uso do computador) e as reflexões e contactos.
Destinatários desta obra são também os "normovisuais" que tendo um familiar ou amigo portador desse tipo de problema, queiram ajuda-lo, ou dedicando-se pessoalmente à sua leitura, uma vez que ninguém se pode considerar imune a um problema de visão uma qualquer patologia, acidente de viação ou de trabalho podem transformar, a todo o momento, a nossa vida e a "visão" que dela temos."
UMA EXPERIÊNCIA DE VIDA
UM LIVRO DIFERENTE
Excerto do livro
Aos meus amigos.
Verdadeiros "soldados" da solidariedade. As vossas "piadas", a vossa "companhia" a vossa verdadeira amizade, foram tónicos que "bebia" sofregamente.
Quanta energia. Que enorme "corrente". Quantas "promessas". Amigos assim poucos há.
O meu reconhecimento e gratidão! Jamais vos esquecerei. Uns mais que outros, mas sempre com carinho.
António Brás

Façam o favor de não perder.
É na 2 domingo 15 às 11:15


sábado, setembro 30

26-2006: No rescaldo da festa I V

Festa de 1986 com a actuação do rancho de Toulões, orientado pelo ti Pedro "Castanho" que, com a colaboração de algumas pessoas, o conseguiu manter vivo durante cerca de dois anos.
Com esta quarta e derradeira entrada, termina o rescaldo da festa de verão que incidiu essencialmente sobre as suas particularidades pagãs, já que a parte religiosa era, e continua a ser, semelhante a tantas outras.
Talvez a merecer algum destaque e que, neste aspecto, tornava Toulões diferente das demais aldeias (pelo menos da grande maioria), era o leilão dos "banzos" dos andores e das bandeiras com que se fazia a procissão e cuja receita revertia para ajudar à realização da festa.
Com frequência havia acesos despiques entre os licitadores que, tentando a todo o custo cumprir uma promessa, pagavam o que fosse necessário para manifestar a sua fé e ser parte activa na procissão que percorre as ruas do povo.
Mesmo pagando, as bandeiras e os andores não davam para as encomendas.
"Mudam-se os tempos mudam-se as vontades".
Este costume, certamente por défice de devoção, entrou em desuso em meados da década de 80 e desde então, mesmo sem leilão, com alguma dificuldade se arranjam voluntários que queiram preencher as vagas em aberto e participar na procissão, transportando seja que imagem for.
Bom, mas vamos ao arraial.
Noutros tempos não havia conjuntos musicais.
Os arraiais eram abrilhantados pela aparelhagem e por tocadores de acordeão, os "cordionistas".
O homem da aparelhagem foi durante anos o senhor Silva de Tinalhas.
Já era considerado um homem da terra pela simpatia e pela seriedade com que lidava com todos, assim como pelo empenho que punha no seu profissionalismo.
Chegava com sua camioneta, ia cumprimentar os festeiros e com os dois altifalantes amarrados no tejadilho, que mais pareciam clarins a anunciar a boa nova, em dose dupla, ia dar a volta pelas ruas para avisar da sua chegada.
Era um primeiro exalar de cheiro a festa.
Toda a canalha, numa agitação provocada pelo nervosismo da impaciência, ia aderrabo daquela charanga ambulante. Os festeiros, também a acompanhar, lá iam para uma última ronda relembrar aos retardatários da quase obrigatoriedade de pagar para a festa, contribuindo na ajuda à sua realização.
E dos esquecidos, ou que se faziam, não rezava a "listra" dos beneméritos, da qual, era quase certo, a menos que houvesse voluntários, de entre os poucos inconstantes, três eram nomeados festeiros para o ano seguinte.
E desonra lhes cairia sobre o nome se se negassem!
Entrementes, o adro era enfeitado com arcos floridos, com serpentinas e com "fitas" que as raparigas briosa e dedicadamente faziam com tiras de papel de todas as cores coladas numa guita. Fazendo lembrar as velhinhas dobadouras do linho, iam sendo enroladas em volta de uma cesta para evitar emaranhos e seguidamente suspensas de um lado para o outro da rua, unindo as casas pelos beirados, como que a querer remendar a ralação entre as famílias, por vezes desavindas.
A festa também apelava à união.
"Estendiam-se as luzes". Gambiarras com dezenas de lâmpadas, cruzavam-se com os restantes enfeites, mas só produzindo o seu efeito depois de cair a noite.
Era como se o céu estrelado estivesse mesmo ali ao alcance da nossa mão.
Nesse tempo ainda a iluminação eléctrica, que desconfiadamente embisgava o olho à tecnologia luminotécnica, e se via negra para rasgar a escuridão, não tinha chegado a Toulões.
As ruas eram alumiadas apenas nas noites de luar.
A luz que brilhava no arraial, era produzida por um gerador que ficava até de madrugada, de castigo, a gemer atrás da igreja.
Ideias iluminadas de galfarrotes.
Uma vez o Zé Fô, que tinha a fama de um malino e a curiosidade de um engenhoso, abrigado pelo lusco-fusco que o escondia do frenesim do adro, lembrou-se de verter águas sobre o escape do motor-gerador, para ver o efeito da lufada de vapor que aquilo fazia.
Apanhado à falsa-fé por um encosto do colega do lado, um movimento mais desajeitado obrigou-o a direccionar o jorro sobre o cachimbo da vela de ignição. Para além do esticão que apanhou na "betchola", abafou o pavio, deixando o arraial às escuras e os dançarinos a inventariar as constelações.
Para quem namoriscava pela surra era a oportunidade para fazer brilhar a sua estrela.
O burburinho do costume.
O que é que foi, o que é que não foi?
O desinquieto do Zé, que era d’ orêlo, desabelhou logo dali para fora com os amigos, deixando a responsabilidade ao abandono. É que ser apanhado pela patrulha dava, no momento, sete e quinhentos de coima por ter urinado na via pública e ao chegar a casa ainda ganhava uma valente orelhada do pai para recuperar o prejuízo.
Aqui a autoridade era imposta, era mantida e, sobretudo, era respeitada.
Pouco depois foi o regresso à normalidade.
Siga a dança qu’o tocador é homa (homem) de confiança!
O tocador era quase sempre o do ano anterior. O Sr. Alziro da Orca ou um do Salgueiro do Campo, cujo nome, perdoem-me, se me varreu da memória (um homem também não se pode alembrar de tudo).
Ambos eram bons. Fosse qual deles fosse, sacava do repertório de êxitos da Eugénia Lima, do Filipe de Brito ou outros bem populares que guardavam no ouvido e que, com uma destreza estonteante, lhe saíam pelas pontas dedos, punham uma multidão a contribuir para prosperidade dos filhos dos "Sapateiros" cá da terra.
Quando o tocador descansava, entravava a aparelhagem. Para além de outras sanfonadas, dançava-se ao som dos discos da Maria Albertina ou do António Mafra, que naquela altura punha meio Portugal à espera do "carteiro da 9 para as 10".
Enquanto um povo esperava, outro desesperava.
No arraial, só música nacional. Esporadicamente se ouviam estrangeiradas.
Música inconveniente, para o status vigente, ouvia-se recatadamente lá por Lisboa por mancebos que gostavam dos Beatles e dos Rolling Stones e que, tal como o rapaz americano de canção da Joane Baez, viviam descontentes com o nosso Vietnam.
Aqui, apenas o Josélito, "El ruiseñor"(rouxinol) da voz de ouro, tinha cabimento. Importado de aqui ao lado e bem aceite por via da empatia transfronteiriça, começava a comover multidões com aquela voz de menino que era, enaltecendo a beleza natural "da Campanera":
"Porque te han pintao las ojeras, flor del lírio real?"
A dada altura, instruído por um dos festeiros lá vinha o sempre prestável Tónho "Santoantónho", com o regador de lata apagar a poeira do terreiro. Interrompendo a dança, de propósito ou não, regava de caminho a planta dos pés dos bailarinos.
Era o momento para respirar fundo e ganhar novo fôlego porque este era também o sinal de que o balho ia atingir o seu auge.
Se para o nosso povo não havia festa sem foguetes, para os Toulonenses também não havia festa sem fandango.
A pedido, o tocador lá ensaiava os primeiros acordes, que depois de encarrilar era coisa para durar "até vir a abó da missa".
Toda a gente o balhava até à exaustão e às vezes mais que uma vez durante a noite. A alameda de pares em que se entrava e saía sem interromper a cadência, por vezes extravazava para além dos limites do recinto.
A circunferência de cadeiras em que descansavam as mulheres mais velhas que vinham acompanhar as filhas e algumas quadrilheiras que rodeavam o adro, era obrigada a abrir alas e dar espaço aos foliões numa alegria contagiante.
Muitos faziam gala em mostrar as suas aptidões de fandangueiro, demonstrando que a coisa era levada a sério.
O fandango tornou-se aqui tradição e ai do tocador que não o soubesse tocar. Era esfandangado sem dó nem piedade.
Estranha-se que uma dança originária de uma região ainda distante como é o Ribatejo, tivesse sido adoptada pelas gentes de Toulões com tão grande entusiasmo.
A razão, sem certeza absoluta, deve-se, num tempo em que o trabalho por aqui não chegava para todos, às campanhas da monda e da ceifa que alguns faziam por terras de gaibéus e de campinos, onde já estava enraizada e já era considerada dos grandes elementos do folclore e da cultura popular do nosso país.
Terminados os festejos era tempo de regressar ao trabalho e retomar o ritmo habitual.
Todo o aparato do arraial fora desmontado. Apenas as fitas colocadas pelas raparigas, ainda ali permaneciam quase até à autodestruição, como que querer perpetuar a festa, evitando a sua queda no precipício do esquecimento.
As guitas, agora despidas dos enfeites, eram agora ponto de encontro das andorinhas que, com a chegada do Outono, ali se reagrupavam e ganhavam alento para continuar o ciclo migratório, levando consigo definitivamente a alegria da festa que era trazida de volta no início de cada Primavera.
INTÉRPRETE PARA FORASTEIROS
aderrabo (ir ou andar a); perseguir, andar atrás de
balho – balhava; baile - bailava
betchola; pilinha
orêlo (ser de ou ter); ser expedito, perspicaz, manhoso, desenrascado
embisgava; de embisgar – piscar olho ou franzir o sobrolho
esfandangado; de esfandangar – despedaçar, esfarrapar, destruir
à falsa-fé; à traição, ser enganado, premeditadamente
galfarrote; rapaz buliçoso
malino; velhaco, mal intencionado, malicioso
quadrilheiras; alcoviteiras
sanfonadas; de sanfona – harmónio, concertina

sexta-feira, setembro 29

25-2006: No rescaldo da festa I I I

Fogo preso no Largo do Poço da Malhadinha (1980).
(comparar com a foto do post anterior que contém o endereço da Arca)
O vento da desertificação, que há anos assola esta região levando para outras paragens os filhos por aqui nascidos e por aqui criados, sabe-se lá com que dificuldades, foi para muitos o vento da mudança. Esse mesmo vento devolveu agora às origens alguns menos resistentes ao sopro de saudade, para aqui passarem o resto dos seus dias, usufruindo de algum bem-estar que conseguiram, subindo a pulso a corda da vida.
São estes "novos" residentes que agora vão dando algum safanão no marasmo, evitando o adormecimento completo da rotina.
Hoje, depois de alguma observação aqui e ali pelo ambiente festivo, verificamos que na organização das festas de aldeia há menos improviso.
As coisas já são tratadas com regra, havendo manifesta preocupação com os requisitos mínimos de salubridade e segurança, com os aspectos legais do evento e, quase se pode dizer, existe um protocolo conduzido por profissionais do espectáculo que, apesar de haver cada vez menos gente nas aldeias, mantêm o negócio em crescendo. As animações já são feitas com recurso aos mesmos equipamentos tecnologicamente sofisticados que nas cidades.
Ele é o conjunto psicadélico para o baile com luzes strob e sons do outro mundo.
Ele é o "cantor" que parece que canta mas não canta porque o playback milagrosamente lhe alivia a forte rouquidão que escondia antes de se iniciar o espectáculo.
Ele é o homem dos sete instrumentos que antigamente, qual bobo, se desunhava para esfarrunchar uma moda qualquer em que hoje, sóbrio, consegue, com um só instrumento, produzir música equivalente a uma orquestra sinfónica.
Ele é tanta coisa.
Enfim!, tudo mudou.
Mesmo o fogo mudou. O fogo preso vem agora com ignição electrónica e comandado à distância, fazendo jus aos magníficos espectáculos da Expo 98, que, em comparação, quase nos levam a crer que tudo não passava de uma fraude.
Diz o ditado que "não há fumo sem fogo". A verdade é que sem fogo também não há festa. Pelo menos não havia, porque este ano os mais velhos ficaram completamente desacorçoados.
Habituados a apreciar os espectáculos pirotécnicos, estranharam a falta de foguetório por não se terem inteirado das leis que vieram restringir o seu lançamento como medida de prevenção para os incêndios florestais.
As leis fazem-se e são para cumprir, mas quantas vezes nos apetece infringi-las de tão patéticas que parecem.
Qualquer foco de incêndio com origem no lançamento de foguetes não é tão perigoso como o querem fazer crer. É verdade que o risco existe, mas com tanta gente por perto, e de sobreaviso, rapidamente se retesam as rédeas à ala impedindo-a de desalvorar a galope.
Bem perigosos, esses sim, eram o balões de mecha que, lançados ao Deus dará, pairando efemeramente no ar, por vezes caiam, ainda incandescentes, em locais aonde não se podia acudir atempadamente.
Agora foguetes?
E se havia descargas!
Elas faziam o regalo dos garotos que palmilhavam aqueles campos, todos relampantes, a apanhar as canas como numa rebatina e por fim, pouco preocupados com o maltrato da jaja nova estreada nesse dia, regressavam pelos caminhos ao rebusco das últimas amoras silvestres que aromatizavam o verão.
Era pelo lançar do fogo, cujo troar ecoava decidido pelos céus das redondezas que, como que um convite, se anunciava a festa às povoações vizinhas.Pelo tempo que durava a descarga media-se a prosperidade das gentes das aldeias que tinham orgulho na sua festa.
Por vezes até havia excessos.
Era festeiro o ti F'cisco N. para quem a fartura era sempre proporcional à sua envergadura, tanto fisica como moral. Aquele homazarrão estava sempre disponível para ajudar fosse quem fosse e era de uma rectidão linear. Com ele tudo tinha de ser como é dado.
Nesse ano encomendou-se uma fortuna em foguetes que excedeu largamente o padrão habitual.
Para o ti F’cisco, grande devoto de Santo António, a despedida do santo no final da procissão tinha de ser digna e ficar na memória de todos.
Logo ao romper da manhã, como de costume, era deitada a alvorada que acordava este mundo e o outro com as estridências daquela salva contínua.
Perdendo a noção a tamanha quantidade de foguetes, ao ouvir um tão prolongado estralejar, pensando trata-se de um descontrolo dos fogueteiros, foi-se a eles como gato ao bofe pedir contas pelo esbanjamento.
Sai de casa à pressa atrapalhando a mulher que, àquela hora, já compunha a colcha de seda na janela fazendo contrastar o vermelho sanguinho com a parede branca acabada de calear, embelezando e enobrecendo aquele lar a fim de receber condignamente a procissão que lhe passaria à porta.
Danado com os homens do fogo, por entre descomposturas e impropérios, ele que até não era de faltas de respeito, no meio do descontrolo sai-se ele com esta blasfémia que deixou toda a gente embasbacada:
- Agora gastandas (gastais) os foguetes todos duma vez e logo, ao recolher da p'cissão, dêtéis (deitais) merda ó santo!?
Mas foi apenas fogo de artificio!
Neste quadro de mudança, a única coisa que se vai mantendo inalterável é a carolice e o voluntarismo dos festeiros que se esforçam em não deixar morrer as tradições da sua terra, de forma a que a festa se vá fazendo ano a ano.
INTÉRPRETE PARA FORASTEIROS
ala; chama
desacorçoados; desiludidos, tristes
esfarrunchar; tocar um instrumento ou fazer qualquer coisa para a qual não se tem aptidão
homazarrão; homem corpolento, homem com muita força
jaja; roupa de criança
rebatina; apanhar caisas do chão ao desafio
relampantes; alegres
retesam; de retesar - tornar tenso, esticar

quarta-feira, setembro 13

24-2006: No rescaldo da festa I I

Largo do Adro

Largo do Poço da Malhadinha
Ainda no rescaldo da festa, e desanuviando a neblina que nos turva a memória, ficam a descoberto outras histórias que marcaram muitos de nós.
Desde há pouco mais de meia dúzia de anos que as festas de Toulões se realizam na Terra da Cadela.
Aproveitando um ringue construído uns anos antes para suprir a carência de infra-estruturas desportivas para a juventude, (a destempo, já que quando havia rapaziada para jogar à bola, em qualquer parcela de lameira por amanhar se improvisava um campo de futebol e agora, que a aldeia está despovoada, fez-se um ringue para estar às moscas durante o ano, servindo apenas alguns dias durante o verão aos netos cá da terra que ainda vêm vindo visitar os avós), a autarquia, bem ou mal, associou ao ringue umas instalações para a realização das festas.
Essas instalações foram apetrechadas com todas as comodidades - palco com camarins para os artistas, casa para "comes e bebes" com resguardo para grelhador, balcão com telheiro e nem a "cantareira" para as prendas da quermesse ficou esquecida. Enfim, tentou-se dar mais utilidade àquele espaço e dignificar o trabalho de quem graciosamente se disponibiliza para fazer com que a tradição não desfaleça.
É certo que – e é caso para dizê-lo – "só serve uma vez por festa!". Mas esta iniciativa permitiu retirar a parte pagã das festividades do adro da igreja já que por ser um espaço bastante acanhado, em que, naqueles três dias, em termos de circulação de veículos, a povoação ficava partida ao meio, separando a Malhadinha do Cimo do Povo.
Como a mudança traz sempre resistência, a quebra deste hábito muito antigo chegara a gerar algumas guerras fratricidas.
Por mais de uma vez, festeiros com maior espírito de iniciativa, tentaram levar a festa para espaços mais amplos como eram o Largo do Poço da Malhadinha (chegou mesmo a esquiçar-se um plano que previa a construção do palco sobre o poço público que dá o nome ao largo, em vez de utilizar, como habitualmente, os reboques dos tractores) ou o Terreiro das Baraças, que apenas perdia por ser ligeiramente mais inclinado, mas, opiniões divididas, falta de consenso, as vozes discordantes levaram sempre a melhor.
Era a tal história: "Todos concordavam em mudar a festa de sítio desde que fosse para a porta do vizinho" por isso, lá continuou anos sucessivos encafuada na exiguidade do adro.
A solução encontrada de mudar a festa para fora do casario, foi de se lhe tirar o chapéu, mas, mesmo assim, os mais antigos e mais apegados a valores religiosos, não viram com bons olhos a nova localização.
É que o nome "Terra da Cadela", que por si só já era um valor, não podia ser evocado em vão em memória dos entes queridos dos Toulonenses que lá repousam.
Para todos os homens que, ao passar à porta do cemitério, repetiam o gesto que aprenderam desde criança, de descobrir a cabeça e se benzer em sinal de respeito pelos que já se foram, tirar o chapéu à decisão tomada era apenas para considerar a festa, naquele local, um fúnebre acontecimento.
O mesmo para as mulheres que, por uma razão comum carregavam o luto toda uma vida, se persignavam ao passar, baixando a cabeça e evitando olhar através das grades impedidas por uma consciência providencial, seria uma triste alegria.
Mas como diz o povo:
"Meu amigo, a cevada não é trigo e com o devido respeito, fez-se?... está feito e o que se fez tem jeito" portanto...
A vida continua e a tradição também!

quinta-feira, agosto 31

23-2006: No rescaldo da festa

Terminadas as férias estou de volta. Quero pedir desculpa aos leitores, que amavelmente se dão ao trabalho de ir fazendo uma visita de vez em quando, por este interregno mais longo que o previsto, mas como nem sempre tudo corre como desejamos, em que os imponderáveis obrigam a escolhas...
Enfim, adiante!
Do rescaldo da festa sobraram algumas histórias, já um pouco empoeiradas, relembradas em joviais conversas de amigos ao balcão do bufete, ensurdecidas pelo exagero dos decibéis que, por compressão, saem espavoridos do sistema de som que anima o arraial.
Histórias que enchiam um verão. Histórias de quando a "canalhada" ia nadar no Salto da Cabra, onde a Toula se engasgava nos dias de enchente, ou noutras charcas de água mais "remansada". Em simultâneo com uns banhos refrescantes apanhavam-se umas peixadas, mesmo à mão, nas "talocas" submersas das bordas da ribeira. De vez em quando um o outro peixe vinha acompanhado de um susto, mas que importava. Apesar da repugnância que as cobras de água provocavam nalguns mais assustadiços, todos sabíamos que eram inofensivas.
Muitas vezes, espremendo os pedadais da bicicleta até à exaustão, ia-se para o Aravil ou chegava-se à ribeira da Taipa ou até ao Charco Redondo, na ribeira espanhola (Erges), a montante de Salvaterra, a corta mato, passando sulcos de restolho, como calhava.
Ali é que era pescar.
Levava-se a cabacinha do sal, o capa grilos, sempre a rasgar o fundo ao bolso, que, para além de servir para tudo o que servia o canivete do Mc Gyver, servia também para estripar o peixe. Faziam-se umas brasas num sítio desimpedido, não fosse o fogo alastrar ao mato, assava-se o peixe e marchava tudo. Sem pão nem nada!
No entanto, estes locais eram muito distantes do povo e às vezes não havia tempo para andar por lá,
Quando se queria ir aos bailaricos, para não incomodar o sentido olfativo das cachopas, depressa se chegava à nora do ti Dominguinhos a tomar um banho higiénico. Sempre se lhes amordaçava o sentido da crítica. Para mais que, naquela altura, já os Procol Harum, com a canção "A whiter shade of pale" punham Portugal ao rubro de tanto atrito, originando a criação de cada vez mais famílias.
A nora era um poço enorme nos arrabaldes do povo, logo ali ao fundo do Ribeiro do Raposo, já quase a beber na Fonte do Corcho.
Nunca soube porque lhe chamavam assim. Não havia alcatruzes, nem engenho, nem vestígios do dito. A rega fazia-se com um motor Pachancho que veio substituir o velhinho Perkins, pesado c’ma um burro, sempre em cima da carreta que mais parecia uma cadeira de baloiço. Quando se punha a zurrar, vomitava umas três polegadas de água que regavam uma lameira enquanto o diabo esfrega um olho.
Mas os banhos na nora eram para os experimentados e mais afoitos. Por duas razões: Primeiro porque só lá tomava banho quem não se atormentasse naquela avultada massa de água e quem fosse capaz de sair de lá, escalando os três metros de forro em pedra de xisto. Depois porque era preciso estar sempre de sentido afinado não fosse o dono aparecer de repente e "encorrer" tudo à pedrada, ou confiscar a roupa, como acontecera uma vez ao Luís Patacoxa, acusado de derrubar as pedras das guardas lá para dentro.
Se quis a roupa de volta, teve de amargar uma tarde inteira a regar um leirão de milho para não ficar sob a alçada do regedor, "encarrapato", à espera da patrulha que viria de Alcafozes.
Bom, mas na nora nadavam outras histórias.
Eram vésperas da festa de Santo António, numa altura em que, esta, ainda se fazia nos primeiros dias de Setembro, marcando o fim de um ciclo anual de trabalho árduo, que se reiniciava sempre no São Miguel, que já batia à porta.
O Verão estava quase de "cambecas". O sufoco ainda aturdia as últimas melancias, entre outras superfícies descabeladas, e fazia arcar as galinhas, assedentadas, com língua de palmo.
Já havia um bom "catcho" que o sol tinha passado o pino do meio dia, mas as quatro ou cinco badanas do Velho Gato ainda rodeavam à sombra de uma velha bebereira estival, debruçada sobre o Raposo, como que a querer salva-lo e atingir a outra margem.
Do outro lado, o Ti Gato, nos setenta já passados, fazia jus ao nome que lhe calhou em sorte e o celebrizou, por uma vez, com uma coragem e agilidade de felino, ter tirado um ninho de águia no "cruito" dum "calípio" com mais de vinte metros, para os lados do Carriçal.
Conservando ainda parte dessa agilidade, "engarramiçava-se", freixo acima, para "esnocar" umas pernadas ramalhudas com folhas de um verde cheio de viço, que iam complementar o pasto, torrado pelo estio. Os animais é que agradeciam aquela verdura que lhes amaciava o leite e retesava o "amojo".
Tratado o vivo, o velhote sentindo "caraiva" junto à nora, foi-se até lá na busca de um pouco de companhia.
- Maltesaria… Deus nos dê boas tardes! – deu ele a salvação "como manda a hóstia".
Abeirou-se do poço e especou-se junto às guardas, encostado ao bordão, a espreitar para dentro, como que a fazer um levantamento a olho do local.
A rapaziada, "encourinha" de todo, estava pouco incomodada com a sua presença. Sentados nas guardas a secar o coiro e apanhar sol como os lagartos nos primeiros raios de Fevereiro, fumavam uma cigarrada ou então catavam o melro.
Só o Taranta estava dentro do poço à unha com a melena encarapinhada, mais estanque que pena de pato, a tentar lava-la com o perfumado champô Heno de Právia que trouxera duas semanas antes da feira espanhola.
Atão ti Txico, no se quer "meter à coviça" connosco? - disse ele ao ver o velhote assomar-se.
E meteu-se. Despiu-se e galgou as guardas. Empinou-se no descanso, uma pedra saliente do forro do poço que servia para sujeitar mangueira do Pachancho e mantê-la afastada do bordo, que a malta utilizava como de prancha de saltos.
Respira fundo, espreguiça-se como que acabando de largar a enxerga e, relembrando o tempo em que ele para ali vinha amiúde, lança um solene "Ora atão vamo lá ver!"
O homem, de aparência já mirrada, com o corpo a evidenciar os sinais do desgaste provocado por uma vida inteira de trabalho, lança-se desajeitadamente à água, que estava um nível abaixo aí uns dois metros bem medidos.
O corpo desapareceu, recoberto por um reflexo de esmeralda. Dois gorgolões vieram ao cimo trazendo alguns limos soltos.
Ninguém conhecia os dotes de nadador do homem.
O lapso de tempo entre o salto e o ressurgimento do velhote à superfície provocaram nos rapazes uma inesperada angústia.
Fez-se um silêncio espectante, quase a lembrar célebre imagem de Artur Portela, a descrever o mergulho de António Quadros, num dos lagos da Praça do Rossio, que deixou ansiosa uma enorme assistência.
O ti Xico lá emergiu. Ofegante, deu três ou quatro braçadas para alcançar o banco do poço, e, tal como no episódio do Portela, teve direito a uma salva de palmas e tudo.
Porra ti Txico! Pensávamos que queria lá ficar no fundo, a fazer companhia ó João do Reis! – disse aliviado o Batateiro lá de cima .
Ôi parente, também ajudei a tirá-lo! Quando ele cá ficou, ainda eu nadava c’ma uma rã! - referiu com um sentimento nostálgico
Atão veio tomar um banho para amanhã ir lavadinho à festa, não?
Bom, poi! Hoje lavo aqui o corpo e amanhã lavo a alma na pia da água benta.
Tame lá. Lave-se lá com isto! - disse-lhe o Taranta estendendo-lhe o frasco do champô.
Ele, que não conhecia outro sabão a não ser o de soda que vendia o Peixoto, experimentou com agrado a novidade. Mais uma lavadela, mais uma cacholada para enxaguar e depois é que foram elas.
Para sair da nora, a agilidade necessária não era a mesma que para subir a um freixozito. A custo, lá se "embarrou" pela parede, amparado por dois rapazes, saindo incólume da aventura.
Pega na camisa que pendurara no bordão e vestiu-a, mesmo sem se limpar. Quando se preparava para a abotoar, num inspirar profundo, manifestando conforto e bem-estar, solta, triunfante, um desabafo de alívio:
À corpo do pecado que já há mai dum ano que no vias água!
INTÉRPRETE PARA FORASTEIROS
Amojo; ubre
Calípio; eucalipto
Cambecas; a cair, a acabar
Canalhada; criançada
Caraiva; grupo de compania, brincadeira
Catcho; naco, bocado
Como manda a hóstia; como pertence, como é hábito
Cruito; ponto mais alto, cocuruto
Embarrou; de embarrar - escalar
Encarrapato; nu
Encorrer; escorraçar
Encourinha; nua, em pelo
Engarramiçava-se; de engarramiçar-se - pendurar-se
Esnocar; partir
Meter-se à coviça; imitar, agir por inveja
Remansada; calma
Talocas; buracos, tocas

sábado, julho 29

22-2006: Férias é ida à terra

Festa de Santo António - Agosto 1982

Estão aí as férias. Há uns anos, significava, isto, ter de cumprir o dever de ir passar uns dias à Terra.
Hoje há outras prioridades e outras vicissitudes, mas os que lá continuam a ir, mantêm o mesmo espírito de há uns anos atrás.
Iamos ver a família e aproveitar a ocasião para rever os amigos que durante o resto do ano andam dispersos por esse mundo cada vez mais pequeno, mas onde cada vez nos reencontramos menos.
A festa traz cá toda a gente e aqui é o ponto de encontro.
Os três primeiros dias são dias de enreio. Sai-se de casa para ir tomar uma bica, e para andar uns escassos 100 metros, demora-se tanto tempo a fazer o caminho que, quando um gajo lá chega, já esta o café frio.
Enreios são mais de mil, mas são todos bons. Temos de cumprimentar e retribuir. É a manifestação da estima que reciprocamente se mantém e faz matar saudades aos já não se viam há uns tempos.
Enreios são também os convites a que não nos é permitido resistir, fruto da amizade que nos liga. Depois do abraço vem logo o esticão do... aguenta aí.
- Entra cá e bebe aqui um copo; vá lá, mai um "catcho" de chouriço.
- Agora vamos à minha casa!
E podemos lá nós fazer a desfeita de atravessar aqueles seis metros de rua.
- Queres uísque ou ricardo?
Isso de oferecer vinho foi água que há muito ano passou por baixo da ponte da Toula.
Para o Zé Manhouvas, que está na França, vai para vinte e tal anos, só mudaram os hábitos do que se põe à mesa. De resto, quando cá chega parece que o tempo parou durante todo aquele período. Recomeça a viver como se tivesse feito um interregno para continuar a vida do dia anterior. A França, apesar do trabalho "cansado", parece mais um local de hibernação para os emigrantes do qual acordam quando chega o mês de Agosto.
- Pega aí, queijo e uma trancha de jambom, vai! Este é de Baiona. É do melhor que lá há, mas no venham cá com merdas. Não chega aos calcanhares daquele que se tirava da salgadeira, com dois dedos de gordura, e com um naco a acompanhar uma gaspachada fresca à sombra de uma sobreira, era manjar de abade.
Vamos então todos ao café e lá encontramos mais uns frascos. Renovam-se os cumprimentos, fala-se das nossas vidas, contam-se mais umas histórias antigas, peripécias passadas e vem sempre à baila a lembrança dos que de certa forma esqueceram a terra e lá vão esporadicamente.
Depois inevitavelmente, relembra-se aquela história, que se conta um pouco por todo o lado, da rapariga que deixou a vida de pastora, tendo ido muito nova servir para Lisboa. Voltando, passados alguns anos, como que atacada pela síndrome do snobismo, já não distinguia um rebanho de ovelhas de uma cabrada.
Logo de seguida vem a comparação com episódio do Monarca que, dizia ele, habituado à vida da cidade já lhe custava refazer-se à terrinha e renegava por completo as suas orígens.
Espernicava-se todo para falar à moda alfacinha, tentando disfarçar o sotaque característico da aldeia que ainda conservava e, atraiçoando-o, lhe deixava transparecer algum complexo. Aquele pormenor era, para ele, como a marca idelével deixada por um ferro em brasa de identificar o gado.
O Monarca, convidado por dois amigos para beber, aceita de bom grado e entra na taberna.
Acercam-se do balcão. Ele fica ligeiramente para trás, como que a medo de lá encostar a barriga, mas de repente, numa ostentação de vaiadade...
- Eu é que pago!
- Atão o que é que vai? – pergunta o ti Bata.
- Um copo diz o Cravoeiro.
- Um traçado, que a hora ainda não está para esfregas – diz o Margaça
Atão e tu Jxquim ?
O Monarca que lá por lisboa se habituara a beber fino, pediu.
- Serve-me aí um vermute!
- Verimute? Qual verimute qual merda. Aqui no s’usam panelêrices. Bebes vinho cmós outros e mai nada.
Mesmo assim o João Bata ainda lha deu a escolher:
- Queres simples ou traçado?
Aqui fica o programa das festas de Toulões 2006, estando os leitores desde já convidados a participar.
Dele não constam os nomes dos artistas mais caros, mas sim dos bons, estando também implícita a hospitalidade das gentes de Toulões.
POVOS DAS REDONDEZAS, VENHAM À FESTA!
BOAS FÉRIAS A TODOS QUE EU TAMBÉM VOU!

segunda-feira, julho 24

21:2006 - Jogos menos tradicionais

Esta foto, tirada em 1992 em Trás os Montes, mostra um jogador de fito e uma assistência interessada.
Hoje vou cumprir a promessa feita há umas semanas a um leitor que mostrou interesse neste tema e vou aqui abordar um pouco os jogos tradicionais. Não daqueles jogos que todos conhecem. Os que são comuns, se não a todo o país pelo menos regionalmente, mas dos que, suponho eu, eram exclusivos, ou quase, aos habitantes de Toulões .
Digo, suponho eu, porque o mesmo jogo poderá ter um nome diferente noutra terra ou região e que eu desconheço.
É exemplo o Jogo da Bilharda que em Toulões se designa por Jogo do Moucho ou o Jogo do Espeta a que nós chamamos Jogo da Sovela ou até o popular Jogo do Galo que se joga ainda por todas as escolas. Por aqui, num tempo em papel e caneta escasseavam, jogava-se com marcações no chão, com pedrinhas que aqui dão pelo nome de chinas (tchinas) e que, por essa razão, se chamava mesmo o Jogo das Chinas.
À semelhança do que sucedia por todas as aldeias, os jogos tradicionais eram uma forma de entretenimento que servia para testar capacidades, desenvolver aptidões físicas e intelectuais e, quando decorriam de forma harmoniosa e civilizada, serviam, sobretudo, para fomentar amizades, tanto entre elementos de uma mesma equipa como entre adversários.
É claro que qualquer jogo pressupõe a perda e o ganho. Por esta razão, como naturalmente se entende, existe sempre o risco do desentendimento, mas, de um modo geral, eram bastas as vezes que o jogo, qualquer que ele fosse, e salvo algumas excepções, acabava sempre à volta de uma rodada de copos, naturalmente, paga pelos que perdedores. De qualquer forma sempre vale mais beber, mesmo perdendo e pagando, do que "jogar de arreda queixo".
Estes passatempos ou divertimentos tinham lugar nos tempos livres do árduo, e por vezes sofrido, trabalho do campo, sendo que, mesmo assim, alguns deles aconteciam em qualquer momento de pausa.
Era frequente, principalmente no fim das ceifas, quando se entulhavam os cereais, preparando-os para levar ao celeiro, ou nas sementeiras, fazerem-se desafios para ver quem conseguia por às costas sacas de trigo, cheias a rebentar, quando ainda o suor do esforço do trabalho ensopava a camisa.
Havia homens que logo de novos traziam a força bem puxada. Ainda se contam casos de alguns que chegaram a pôr ao ombro, sozinhos, sacas com cem quilos, arrancadas do chão com os fígados a rebentar sob a compressão dos abdominais.
Amiúde se viam também, à hora de uma bola retemperadora, principalmente jovens, desafiarem-se para o salto corrido (salto em comprimento), ou para o salto a pés juntos que são vulgares em qualquer parte. Enquanto uns fumavam uma cigarrada, ou matavam a sede, outros não queriam saber de descanso.
O salto a pés juntos tinha uma particularidade invulgar que era a de alguns saltadores utilizarem uma pedra em cada mão para saltar. Essas pedras, que alguns, para dar sorte acariciavam, no momento de dar o impulso para a frente, balançando os braços à retaguarda, eram atiradas para trás, fazendo as vezes de propulsor, permitindo chegar um bocadinho mais á frente.
Para fazer um bom salto as pedras deviam ser largadas no tempo certo pelo que o saltador tinha de ser possuidor de uma boa coordenação de movimentos.
Jogava-se ao Puxa o Pau em dois adversários se sentavam no chão, pés contra pés, pernas abertas e depois pegando ambos num pau com as mãos intercaladas, puxava cada um para si, tentando fazer com que o adversário levantasse as nalgas do chão.
E depois havia o Jogo da Vareta que já há muito desapareceu, afastado por uma nova tomada de consciência que as pessoas, entretanto, foram adquirindo gradualmente.
Este jogo, traçado para corredores natos, baseado na antiga corrida de perseguição, modelo que ainda hoje existe no ciclismo de pista, tomava por vezes foros de crueldade. Os dois corredores em despique faziam uma corrida num percurso na ordem dos 100, 150 metros. O da frente arrancava sempre com uma vantagem que variava de acordo com o combinado, mas que em média, rondava sempre os 5 ou 6 passos.
O corredor de trás levava na mão uma verdasca ou uma correia com o objectivo de recuperar a desvantagem e bater no da frente, enquanto não chegavam à meta. O da frente tinha de correr o mais depressa possível para não ser espancado. Chegados ao fim, a corrida era feita ao contrário invertendo os papéis. O perseguido passava a perseguidor.
Quando os corredores se equivaliam a coisa passava sem grande alarido. Agora quando havia grandes diferenças na velocidade de pernas, aquilo era mastocar sem dó nem piedade.
Eram as regras do jogo e só as aceitava quem queria. A aceitação do repto funcionava muito na base do "queres apostar!", á laia de provocação, propondo-se um avanço aceitável que podia variar da ida para a vinda.
Mas com alguma frequência este jogo acabava no Jogo da "Birúla" uma espécie de judo ou luta livre. Cada jogador dava uma moeda à "testemunha" e quem conseguisse derrubar o outro ganhava as duas moedas. Às vezes lá tinha de ir o fato domingueiro prá barrela e menos mal quando não era no inverno em que as ruas era só lama.
Em todos estes jogos havia sempre implícita uma certa intenção do medir de forças e o marcar de uma posição, por parte de alguns dos intervenientes, na tentativa de usufruir de uma certa hegemonia e até construir um currículo que poderia valer a obtenção de um trabalho.
Os mais valentes faziam sempre parte da primeira escolha permitindo-se mesmo mudar de patrão com alguma facilidade. Os mais fracos, que não tivessem a sorte de conseguir, por exemplo, entrar num quinto, estavam sujeitos passar um verão inteiro sem trabalhar.
Mas, em todos eles, alguns dos quais hoje se enquadram no âmbito desportivo, se iam fazendo ao longo do tempo, sempre que era oportuno, servindo de treino para as provas que se realizavam nas festas, duas vezes por ano, em que para além dos prémios que havia em disputa, havia o prestígio de que beneficiavam os vencedores.
Mas o ponto alto das tardes "desportivas" integradas nos festejos do Sto. António e da Sra. das Cabeças, eram as Cavalhadas. O nome não é exclusivo de cá mas a forma como se desenrolavam sim, embora haja algumas aldeias das redondezas também o tivessem adoptado.
Enquanto nalguns lados as cavalhadas são desfiles ou corridas a cavalo e outros em que existe uma certa semelhança com as de Toulões consistindo em encatrafiar uma bola num cesto ou enfiar uma lança numa argola ou roseta, não é a mesma coisa.
Aqui as Cavalhadas eram consideradas espectáculo maior. Atraiam imensa gente para ver aqueles cavaleiros armados em Dons. Quixote, tentarem lutar contra uns panêlos de barro pendurados numa corda, mais parecendo uma cantareira, com uma vara, geralmente das vacas, ou outra preparada propositadamente para o efeito.
Com o cavalo a galope em direcção ao alvo, com o objectivo de estchabaçar com uma pancada, um dos recipientes que eventualmente continha um prémio.
O prémios eram os mais diversificados: Rebuçados, moedas, tabaco em onças Duque ou maços de cigarros dos mais baratos da época (Matarratos, Provisórios, Definitivos, Três Vintes), água, cinza, terra, farinha, etc.
Num destes três últimos estava o mais cobiçado. No meio daquela mixórdia de terra e cacos, que não raras vezes atingia o cavaleiro, caía, ás vezes, como quando, no Outono, as folhas caem das árvores, uma folha de leituga com o valor facial de 20 "paus".
O entusiasmo pelas cavalhadas advinha do facto de, nesta altura, devido à actividade do contrabando (primeiro minério durante a guerra civil espanhola e depois o café até ao surto migratório do final dos anos 50 princípios de 60, para Lisboa ou para França, na busca de uma vida melhor), quase todas as famílias possuírem pelo menos um cavalo.
Na década de 70 já quase não havia cavalos em Toulões. À falta do elemento principal, as cavalhadas continuaram a fazer-se com burros até desaparecerem por completo.
As tardes desportivas das festas passaram então a fazer-se com os jogos de futebol entre solteiros e casados ou entre os da Terra e dos de Lisboa, corridas de bicicleta, etc. aparecendo mais tarde a moda do tiro aos pratos.
Hoje já só se faz a festa de vez em quando, mas quando se faz… FAZ-SE!
INTÉRPRETE PARA FORASTEIROS
birúla;
queda desamparada
bola; pausa para descanso
encatrafiar; enfiar, encaixar
estchabaçar; partir em cacos
jogar de arreda queixo; perder, pagar e não pader beber
leituga; alface
mastocar; bater, sovar
nalgas; nádegas, rado
panêlos; púcaros de barro
quinto; modalidade de empreitada no trabalho da ceifa

sexta-feira, julho 14

20:2006 - A marrada



O campeonato do mundo já se acabou há uns dias, mas só hoje vou poder retirar a minha bandeira da janela, colocando este post em sua substituição.
Portugal portou-se bem. Podemos dizer que não fomos campeões do mundo mas ganhamos o nosso campeonato, o do reconhecimento.
Se ti João Páscoa estivesse ainda entre nós, ele que não perdia um relato radiofónico fosse de que acontecimento desportivo fosse - futebol, hóquei, ciclismo - num tempo em que a televisão não tinha conceito, diria inevitavelmente, sempre que o seu favorito não perdia, com aquela firmeza que fazia dele um homem sempre confiante: "Menos mal!"
Um campeonato completamente atípico.
Fazendo o balanço do CM2006 até às vésperas do nosso jogo com a Alemanha, o jornalista francês Stéphane REGY, do jornal Libération, escreveu um artigo intitulado "Touche de caractère" (para os menos afoitos no francês, touche é a linha lateral do relvado, sendo, neste caso, o banco do treinador).
Realista, sem facciosismos bacocos e sobretudo imparcial, nesse artigo é feito o elogio ao trabalho dos treinadores, principalmente os das equipas melhor sucedidas, que atingiram o patamar mais alto da competição, relegando para segundo plano as exibições individuais dos jogadores. Para ele, neste campeonato foi praticado um "futebol de autor".
O artigo começava por salientar uma frase de Guus Hiddink no início da prova que dizia:" O melhor jogador da Itália é o seu seleccionador" e efectivamente veio a verificar-se.
Se nos lembrarmos que o jogador Ribéry, numa conferência de imprensa antes do jogo França-Portugal, ironizou acerca do Scolari, dizendo exactamente o mesmo. A verdade é que, sem querer, acertou em cheio, indo de encontro à opinião de Stéphane REGY.
Alinhando ainda por uma alusão ao cinema, diz ele de Luiz Felipe Scolari, considerando-o o sósia oficial de Gene Hachman: - … é uma espécie de filosofo que pratica a "arte da guerra Sun Tzu" nos balneários.
- Klinsmman é o renovo do futebol Alemão.
- Lippi impôs-se dando um abanão nos velhos hábitos que dissociavam a palavra "squadra" da palavra"palmarés".
E continuando os elogios diz ele:
-
No país do "coaches", e com o aproximar da "Photo-finish", o CM2006 já designou os seus vencedores. Os apologistas do "coaching high-tech" dão pelo nome de Klinsmann, Lippi et Scolari e fazendo fé no que se diz a seu respeito, poderiam ser candidatos ao "Ballon d’or" em Dezembro próximo.
Ao treinador da França, não lhe retirando completamente o mérito de ter atingido esse patamar, "acusa-o" de se refugiar atrás do nome de Zidane e aguentar a imposição do regresso de alguns jogadores mais velhos, que, apesar de tudo, veio reforçar o espírito de grupo da equipa em redor do capitão.
Domenech, referindo-se a nós, foi provavelmente o treinador que mais infringiu a ética profissional, vindo posteriormente a emendar a mão relativamente a declarações proferidas anteriormente:
"Ne les réduisez pas à ces tricheries. Vous n'avez pas le droit, c'est une belle équipe qui a fait beaucoup de choses"
"a equipa portuguesa não é aquilo que dizem (ou aquilo que ele quis que dissessem – digo eu), mas sim um grupo de bravos jogadores, bem comandados por um excelente treinador".
Treinador é aquele que ensina uma equipa a não sofrer – Treina-lhe a dor.
A Itália saiu campeã por ter sido a equipa mais realista, depois de a França ter claudicado, em que o gesto, absurdo e irreflectido, de Zidane foi bem o reflexo disso.
É bem provável que o Italiano se tenha abeirado dele para lhe elogiar a mãe, e ele não foi de modas.
Para o bem ou para o mal, este gesto ter-lhe-á valido a nomeação para melhor jogador do torneio?
Apesar de tudo, neste campeonato do futebol de autor ele foi um dos últimos que praticou futebol de actor.
Ele que espalhou o perfume do futebol pelos estádios dos quatros cantos do planeta. Ele que, em Madrid, deliciou os espectadores, domando adversários com verónicas e chicuelinas, tão ao gosto espanhol, ao som de olés e passodobles, acaba a carreira desempenhando o papel de "O touro enraivecido".
Agora…
Transferindo este episódio para um tempo sitado aí uns 30 anos antes, passado no Vale da Gama, já ali para as bandas de do léque de Segura, onde o ti Mné Nogueira era o moiral.
O ti Mné Correia, grande lavrador, com três juntas, todas a lavrar, foi lá com uma vaca à cobrição.
A vaca foi posta à vontade dentro da cerca para a qual dava o curral, onde estava preso o touro que já era pai de uma manada. Não se sabendo se a Margaça perdera a lua pelo caminho, o certo é que o touro cortejou, cortejou, cheirou, cheirou, saltou, saltou, mas a vaca nunca se deixou por.
Dado algum tempo de espera, o ti Nogueira, concluindo que o animal se desinteressara, enlaçou-lhe a arreata nos cornos e foi prendê-lo à manjedoura. O touro deve ter-se sentido ferido na sua honra por ter sido retirado à fêmea e vai, espeta uma cornada no tratador deixando-o de tripa à banda.
- Ai-ai, ai-ai!- e o ti Mné Correia lá acudiu, arranjando maneira de levar o moiral ao hospital de Idanha, onde ficou cerca de quinze dias.
Durante uma visita de familiares que já sabiam da história disse-lhe um cunhado:
- Se calhar chamaste-lhe pandeleiro e ele virou-se a ti.
O Manel Nogueira, já recomposto e pronto p'ra paródia, contou então a sua versão do sucedido:
-
Antes fosse. Quando é com ele não se importa, o pior é quando lhe tocam na família.
É que o cabrão, quando eu o estava a prender, a ferver por ter visto fugir os cem mil réis do salto, puxei-lhe a corda e disse-lhe ao ouvido que a mãe era uma vaca e ele não se foi de modas.